Um dia alguém inventou que ser homem significa ser durão, “cabra macho”, provedor, dominador, não chorar, não gesticular, não vestir roupa curta, gostar de futebol, e nunca de balé, ter as unhas sempre cortadas, ter cabelo cortado, ter pênis e competir para provar que o seu é o maior, usá-lo para conquistar várias mulheres, dentre várias outras coisas que limitam milhares de homens até hoje. Sempre achei o gosto do privilégio masculino amargo.
Em momento nenhum somos ensinados a amar, nos cuidar e cuidar uns dos outros, nem procurar ajuda, – isso seria sinal de fraqueza –, e homem não pode ser fraco. Todas essas “regras” me fazem pensar no filme “Close” (2023), em que dois meninos, amigos muito próximos, são rotulados de homossexuais, apesar de provavelmente nem terem noção de sexualidade ainda. Para explicar meu argumento, terei que dar spoiler: um dos meninos comete suicídio, após o outro se afastar dele na tentativa de cessar os rumores. Para mim, o filme não é sobre homofobia, mas sim sobre masculinidade nociva e frágil.
Sobre ser homem, os filmes me ensinaram que basicamente existem dois tipos: os brancos, que são charmosos, engraçados e valentes; e os outros, os criminosos, pobres e até submissos. Essas narrativas são tão difundidas que por muito tempo, os únicos exemplos de protagonistas pretos que eu conseguia pensar era em filmes como “Cidade de Deus”.
E o cinema é um meio de comunicação muito forte. As representações nas ficções têm consequências reais no modo em que as pessoas veem as outras e a si mesmas. Li uma frase uma vez, de algum pensador, que dizia que antes de aprender a ser homem, ele aprendeu a ser negro. Lembrei do poema “Me gritaron negra”, da afro-peruana Victoria Santa Cruz, onde ela narra que descobriu ser negra a partir da violência externa. Não que a negritude seja definida pelo racismo, mas é fato que, muitas vezes, pessoas não-brancas só descobrem que são tidas como “diferentes” por causa dele.
As discussões de militantes na internet, por mais óbvias que pareçam, deixam duas coisas muito claras: as raças atravessam todos os processos de socialização, independente de quem seja; e homens podem se apresentar de inúmeras maneiras. “Eu sou muito feliz sendo um grande homem negro”, disse RuPaul Charles, homem negro com mais de 1 metro e 90, usando peruca loira e vestido cavado transparente, em 1993, em uma entrevista para a TV.
O engraçado disso é pensar que mesmo nascendo com a “dádiva” de ser um homem, ele escolheu se vestir como mulher para ganhar a vida, logo uma mulher… criaturas tão inferiores (contém ironia).
Quando criança, ouvi meu pai falar que para ter o mesmo reconhecimento que outros homens, eu tinha que trabalhar duas vezes mais pesado. Na época eu não sabia quem eram esses “outros homens”, mas entendi desde cedo que o mundo é injusto. Meu pai falava muitas coisas que eu não entendia, era como essas poesias que você não entende o significado mas sente que está falando algo profundo. Outra mania que ele tem até hoje é escutar música e recitá-las, ao invés de cantar, e muitas vezes eu o vi fazer isso com a música “Girassol” do Raça Negra.
A verdade prova que o tempo é o senhor / Dos dois destinos, dos dois destinos / Já que pra ser homem tem que ter / A grandeza de um menino, de um menino / No coração de quem faz a guerra / Nascerá uma flor amarela / Como um girassol, como um girassol / Como um girassol amarelo, amarelo.
Girassol – Cidade Negra
Gosto desse verso. Fala sobre crescer com pureza apesar dos desafios que a vida coloca em nosso caminho. E homens negros têm vários desafios a superar. Começando na infância, a gente aprende a almejar ser jogador de futebol; na adolescência, a gente aprende que tem que se vestir de forma que a polícia não pense que somos delinquentes; no começo da vida adulta espera-se que sejamos “o negão”, com apitite sexual indomável, e por aí vai.
Em umas conversas com um colega branco, descobri que nem todo mundo pensa ou se importa com essas questões. Aí eu entendi o que aquele pensador quis dizer, pois a masculinidade esperada de mim não é igual para todo mundo. No livro “The Man-Not” de Tommy J. Curry, ele pensa justamente no que isso significa.
Ele questiona (em tradução livre): “É possível ele ser pensado, estudado ou engajado além das caricaturizações históricas que o relegam ao Macho, criminoso, mentiroso, estuprador, assassino, bandido, pai caloteiro, abusador, misógino, fera, filhote de fera, superpredador ou o diabo? Ele não é nada mais do que um humano não realizado, uma coisa fatalmente falha, batalhando não contra as lógicas assassinas que racionalizam a sua morte, mas contra a selvageria que lhe foi atribuída e que continua a justificar tratá-lo como uma entidade não-humana? O homem negro é impensado. Ele é um problema intuitivo, uma falha analítica designada pelas atribuições negativas de negritude e masculinidade”.
Sinto que RuPaul decifrou o segredo das performances de gênero: “você nasce nu e o resto é drag”, repete sempre que pode. A frase diz respeito a toda essa carapaça que vestimos: camadas e mais camadas de fantasias que usamos ao tentar provar para o mundo que somos fortes, e nos encaixamos nas descrições do começo deste ensaio. Mas veja bem, o homem negro não escolhe sua “roupa”, como Curry deixa bem claro. O que usamos é uma caricatura, colocada em nós, à força, há séculos.
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