Paulo Gonzaga é especialista em Direitos Humanos, Saúde e Racismo, e usa seu espaço na internet para falar sobre masculinidades negras
As diversas formas que um homem negro pode se relacionar com o mundo ao seu redor nem sempre são amplamente conhecidas. Muito do que se pensa sobre a masculinidade negra parte de estereótipos simplistas muito bem difundidos na sociedade. No entanto, debates sobre o assunto já começaram a ser desenvolvidos, e homens negros estão cada vez mais expostos a tais problemáticas.
Uma voz ativa no movimento de desmistificação do discurso hegemônico das masculinidades plurais é o psicólogo e especialista em saúde mental e atenção básica, Paulo Gonzaga, de 31 anos. Colunista do site Negrê, ele é pós-graduado na especialização em Direito Humanos, Saúde e Racismos pela Fiocruz e escreve sobre as possibilidades de formas de existência e representação do homem negro.
Nascido em Salvador (BA), Paulo cresceu e desenvolveu sua personalidade sempre questionando as interações e expectativas que caíam sobre ele, por ser um homem preto dentro de uma sociedade que reproduz ideologias racistas o tempo todo. Hoje, usa o espaço que tem para debater relacionamentos, machismo, masculinidade hegemônica, família, relações interraciais, não-monogâmicas e políticas, dentre vários outros temas.
Em entrevista exclusiva à Revista Nagô, Paulo falou sobre sua visão da masculinidade negra; o curso que oferece, onde faz análises críticas sobre o assunto; e as alternativas que homens negros podem buscar, a fim de se desvencilhar da lógica colonial do que significa ser negro. Confira:
De onde surgiu a necessidade de falar sobre masculinidades negras na internet?
Essa escolha passa por uma perspectiva bem pessoal. Em algum momento da minha juventude, eu comecei a perceber que era um homem fora de uma lógica da masculinidade hegemônica, da “masculinidade colonial”, como eu gosto de tratar. Ou seja, sou um pouco fora da norma do que meus amigos, a mídia, e parte da sociedade colocam enquanto ser um homem. Então eu começo a me questionar: “eu não sou um homem?”.
Eu comecei a procurar referências sobre esse assunto e em um dado momento, o termo “masculinidade” apareceu na minha vida. Aí eu comecei a entender minha angústia, esse meu estranhamento e questões que eu tinha, como, por exemplo, por ser um homem que escrevia poema e era tido como “menos másculo”, e por isso tiravam um sarro de mim.
Então, comecei isso como algo que me atravessava enquanto homem e que destoava de uma norma e foi aí que eu comecei a repensar: “porque eu não posso fazer isso? Porque eu não posso agir assim? Por que quando eu ajo assim eu me sinto dessa forma? Porque meus amigos, quando se relacionam, só falam de futebol, mulher, carro? Por que eu não posso abraçar meu amigo? Porque os meus amigos não falam sobre si?”. Isso tudo girava na minha cabeça. E eu percebi que dentro dessas relações masculinas, eu com meus amigos, o quanto havia um pouco de vulnerabilidade de falar sobre si.
Teve meu primeiro texto no Facebook que deu o que falar. Homens e mulheres falando sobre, e eu percebi que aquilo fazia sentido pra mim. Então foi basicamente que o assunto das masculinidades negras chegou para mim, porque em algum momento eu percebi que a questão de raça é atravessada pelo gênero, e que era importante pensar e questionar sobre construções de masculinidades negras.
Por que essa masculinidade hegemônica é uma herança colonial?
A lógica colonial foi fundamental para construir o homem hegemônico. Então em 1400, a igreja apostólica romana, já trazia o papel do homem dentro dos livros bíblicos, que é ser o cabeça da casa, e o lugar da mulher construída a partir da lógica inversa, desta que as pessoas devem ter um pé atrás traiçoeiras, essa coisa do pecado original.
O desenvolvimento das ciências, que é branca, machista, também foi utilizado para animalizar homens negros e corroborar com uma lógica racista, a partir do movimento eugenista que começou na Europa, no século dezenove. Ele traz uma perspectiva racista, linkando a cor da pele com personalidade, colocando o homem negro em um lugar de possivelmente criminoso, potencialmente frio, calculista, sorrateiro, e que se deveria desconfiar.
Então a partir do século dezessete e dezoito se construiu a ideia do que seria o homem. E eu tô falando dentro de uma história ocidental. Então, as comunidades pretas e africanas tinham a sua cosmovisão, filosofia e sua construção, mas tiveram que ser submetidas à lógica e à filosofia branca, ocidental, a partir da colonização, e dos processos de escravidão.
Enquanto nós, homens pretos, estávamos em um processo de venda, de compra, de serviço como objetos de troca, sendo escravizados. Esses homens brancos estavam construindo o que era ser um homem. Durante os séculos dezoito e dezenove, na Europa, o processo de colonização e revoluções, se construiu esse lugar desse homem que performa essa masculinidade hegemônica, porque era necessário para se manter o status quo, com essa missão de reproduzir que o homem para ser homem ia ser dominador, viril, forte, e ainda garantir a submissão feminina.
Em seus textos, você incentiva homens negros a revisarem as maneiras com as quais eles se relacionam com o mundo a sua volta. Por que é importante que aconteça esse movimento?
Eu acho que o amor é uma ferramenta importante. E como traz Bell Hooks: por que não uma ferramenta revolucionária? É importante compreender todo o contexto histórico de desamor, para conosco e entre nós. Neusa Santos traz que construímos o conceito do auto-ódio, psicológica e socialmente, a partir de um ideal branco. A gente quer construir este ideal em diversas formas: esteticamente parecer com branco, intelectualmente, às vezes amorosamente também, e assim a gente vai distanciando tudo que é da negritude.
Nesse afastamento a gente começa a nos odiar. O processo de construção de gênero, a estrutura racista, e a monogâmica também traz o ideal de amor branco, que é o amor romântico, idealizado, e que muitas vezes, a estrutura não permite que tenhamos enquanto homens pretos.
E eu sempre falo sobre “o tempo do amor”, sobre investir tempo do amor. As pessoas olham a relação de Rodrigo Hilbert e falam “ele se dedica muito a mulher. Nossa! Ele cozinha pra mulher. Ele construiu a igreja do casamento dele pra mulher!”, mas pra que esse investimento aconteça é necessário ele ter umas empregadas, que vão fazer as outras coisas pra ele, além de todo o dinheiro e fama para poder negociar lugares e comprar insumos para construir o que quiser. Então como é que se vai cobrar a pessoas pretas – a homens negros, mais especificamente –, esse investimento, sendo que o mínimo de acesso ao básico, como emprego, as vezes não se tem.
Então é importante pensar nessas singularidades e na perspectiva de encontrar essa mulher recatada, do lar, de preferência branca. Esse amor que é dado a partir de uma perspectiva da masculinidade hegemônica, da dominação, do controle, então é preciso que a gente repense isso, para que a gente possa entrar em contato com o que somos e poder oferecer para essa outra pessoa, ou outras pessoas, com quem a gente se relaciona.
Como o ciclo de representação de masculinidade tóxica pode ser quebrado?
Eu vou trazer uma experiência minha e que inclusive é uma das partes do curso que é sobre caminhos possíveis para construção de outras masculinidade. Isso é sobre compreender que existe um tempo, existe um contexto e a história do outro que é preciso ser ouvida também. Eu tinha uma queixa do meu pai, porque eu esperava carinho, presença, abraços e afeto. Eu cobrava, mas não estava disposto a ouvir e compreender qual era a história dele enquanto o homem negro.
Então eu comecei a perguntar as coisas e trazer essas tensões para ele, pra ele entender que a relação que nós tínhamos não estava legal. Eu não poderia esperar que simplesmente ele acordasse e falasse “ah eu acho que ele quer um abraço”. Aí ele começou a falar sobre a história dele como filho, e depois, enquanto pai, o que o que é a paternidade para ele.
Eu acabei descobrindo que o jeito “corajoso”, protetor, másculo, de quem guia, disciplina e sabe de tudo era por medo. E foi um impacto pra mim ouvir ele falar que tinha medo que eu me envolvesse com o tráfico, e por isso muitas vezes ele era rígido. Em alguns momentos, meu pai percebeu que tinha errado, mas não podia admitir, porque queria construir essa figura paterna “blindada”, e isso, pra mim, foi emocionante. Choramos juntos e pactuamos que a partir dali a gente ia construir uma outra relação.
Falando sobre isso, eu acabo contagiando meus primos e primas também. Meu primo de dezessete anos, depois de uma live minha, falou “deixa eu entender esse negócio de masculinidade: “isso tem alguma coisa a ver com os meninos me chamarem de “veado” por eu não querer ficar com um menina da escola?”. Então eu penso que é por isso que é importante trocar essa ideia, porque é um movimento interessante de ir desconstruindo e trazendo outras perspectivas sobre masculinidade, paternidade, violências que a gente passa, as possibilidades de paternar, por exemplo.
Você acha que a não-monogamia é uma solução para homens negros se desprenderem desse tipo de comportamento?
Eu acredito que essa é uma possibilidade. Trazendo um pouco da minha da minha construção: quando eu comecei a me relacionar de forma não-monogâmica, eu percebi que não sou a última bolacha do pacote, não sou o único que pode oferecer carinho, amor, cuidado, e isso me deu uma sensação de alívio. Quando eu comecei a perceber que esse amor pode ser compartilhado, essa pressão de ser a pessoa que dá conta de toda a demanda do outro sumiu, porque eu já tenho outras demandas na minha vida.
Então eu acho que se propor a construir relacionamentos íntimos, amorosos, sexuais dentro da perspectiva não-monogâmica é bater de frente com essas estrutura do patriarcado e do racismo que constrói o amor a partir do controle e do ato de prover, porque você passa a considerar que o outro tem um corpo autônomo.
Tem um texto que escrevi que provoca: qual homem que pode prover? O homem branco acessa a cultura com mais facilidade, porque tem o maior acesso a grana, então ele tem acesso a um lugar psicológico de se compreender enquanto humano, e assim é mais fácil ver a possibilidade de prover. Já a nós homens pretos que estamos ali num campo mais vulnerabilizado e precarizado, onde esse acesso ao dinheiro, é muito menor.
A lógica da não-monogamia traz um pouco de reflexão sobre a perspectiva de comunidade. É muito interessante quando o Geni Núñez, do @genipapos traz, em um dos seus artigos, que os catequistas traziam, em suas cartas, que algumas comunidades indígenas não tinha núcleo familiar e por isso era muito complicado saber de quem eram os filhos. Isso feria a ética católica e eles olhavam para isso como uma cultura menor, como uma coisa bárbara, sendo que aquele povo estava vivendo a partir da lógica de comunidade.
Então, é interessante compreender o quanto da monogamia, tem no capitalismo e capitalismo, racismo e patriarcado tem na monogamia. E a gente não pode deixar de dizer que a maioria dos crimes contra as mulheres parte de pessoas próximas que seguem essa lógica do ciúmes, do controle e da dominação, que acaba culminando em uma violência extrema. Muitos de nós, homens negros, acabam caindo nessa lógica de reproduzir essa masculinidade colonial e acabamos violentando nossas companheiras, nossa comunidade e a nós mesmos.
Os debates sobre a “palmitagem” na internet abordam toda a complexidade dessa questão?
Grande parte da internet constrói argumentos de um jeito mais raso. São poucos caracteres, então acho que isso é natural. O problema é que não se faz uma discussão compreendendo as complexidades. Porque falar que mulheres negras odeiam homens negros, e vice-versa, falar que jogadores negros de futebol só têm interesse por mulheres brancas, não traz o fio condutor da estrutura racista como produtora desse lógica que faz a gente querer se aproximar do branco não só esteticamente, mas também amorosamente.
Frantz Fanon fala em “Pele Negra, Máscaras Brancas”, que o movimento de embranquecimento pode ser também a partir dos afetos, não só amorosos, como também no campo da amizade, onde tem aquele preto que só tem amigo branco, e que isso pode falar sobre uma construção do auto-ódio. Então eu acho que o debate é feito com essa falta de cuidado, e a partir de um lugar de muita dor de negros que já foram trocados por pessoas brancos, e achar um culpado para exercer ali sua sua sua chateação.
Quais são os caminhos que homens pretos podem buscar para se livrar dos estigmas de hipersexualização e agressor sexual?
O processo de hipersexualização é fruto da desumanização de pessoas negras. E a partir da falta de compreensão do lugar de cada um de nós na estrutura social, a probabilidade da gente reproduzir essa lógica é bem grande. Uma forma de combater é denunciar, dizer que aquilo não é bacana, para que ninguém não se sinta confortável ao hipersexualizar os outros ou colocar a si mesmo no lugar de objeto.
Lembro muito de um episódio de um reality show, que se passa numa ilha, em que um homem preto responde que a parte que ele mais gosta do seu corpo é seu pênis. E que algumas chamam ele de desodorante por causa do tamanho e grossura dos seus genitais. Então esse cara está imerso na lógica de uma masculinidade colonial. Ele acredita de fato que tem algum poder, mesmo que seja um micro e pseudo poder, ao se vangloriar do pênis grande e teoricamente dar prazer às mulheres.
Dentro da cultura masculinista branca, esse é um lugar de destaque, mas também é de extrema violência com o corpo dele. É o que faz homens, dentro dos aplicativos, às vezes não colocarem nem o próprio nome, só escrevem o tamanho do pênis. Então é importante buscar consciência racial, e pode ser através da arte, da música, dos debates, etc. Mas também é importante a gente lembrar que muitos de nós está numa estrutura tão dura de trabalho, e preocupações mais imediatas, do tipo: “o que vai ter para comer hoje?”, que acabamos não tendo o mínimo de acesso a outros tipos de discursos.
Como surgiu a ideia do curso?
Esse curso nasceu porque as pessoas começaram a pedir, e em certo momento eu achei interessante construir isso. Antes era ao vivo e online. E foi uma experiência incrível e extremamente potente. O curso é aberto para todos que quiserem estar lá. No começo eu pensava: “será que vale a pena fazer esse curso?”, mas eu sabia que isso precisa chegar nas pessoas. No começo foi muito cansativo porque eu faço tudo sozinho, então preparei o curso gravado com o conteúdo que eu construí durante todas as outras edições e é um conteúdo bem interessante, que as pessoas podem acessar quando quiserem.
SERVIÇO:
- O curso “Introdução ao campo das masculinidades negras” está disponível na plataforma hotmart.
- Dividido em 6 aulas, o curso dá acesso a mais de 30 artigos, textos e vídeos sobre masculinidades.
- O contato com Paulo Gonzaga pode ser feito através da sua conta no Instagram: @paulogonzaga92.