Criminalizado, hipersexualizado, negligenciado ou invisibilizado: homens negros sentem na pele as consequências do racismo na comunicação social
A principal herança da colonização europeia no Brasil é o racismo estrutural. Mesmo após 134 anos do fim oficial da escravização do povo negro no país, a sociedade ainda carrega consigo costumes violentos de uma época que durou cinco décadas, e isso pode ser visto em todos os espaços: no encarceramento em massa da população negra, nos altos cargos de grandes empresas, nas produções audiovisuais e, claro, no jornalismo.
É muito comum encontrar exemplos de pessoas negras sendo associadas a comportamentos infratores em notícias jornalísticas, especialmente em programas policialescos, muito populares em audiência, onde existe uma espetacularização em forma de encenação de um jornalismo sério.
Um dos principais exemplos disso, aconteceu em maio de 2012, quando a repórter Mirella Cunha, apresentou um jovem negro, que ainda não tinha sido julgado, como condenado de um crime. O episódio aconteceu durante o programa Brasil Urgente, da TV Bandeirantes Bahia, em que além das acusações, ela trata o jovem de forma vexatória, o humilhando e ironizando a sua falta de letramento. A situação piora quando, após negar diversas vezes ter cometido o crime de estupro, Mirella afirma: “Não estuprou, mas queria estuprar!”.
É a repetição estratégica de uma imagem pejorativa do povo negro brasileiro que alimenta, no imaginário da população, uma narrativa criminalizadora desse grupo. De acordo com o sociólogo Howard Becker, uma consequência desses estereótipos, são as respostas punitivas ao grupo estereotipado, mesmo que esse esteja sendo falsamente acusado. Ele chama as vítimas dessa ação de “criminosos habituais”, criados pelas “instituições de controle da sociedade”.
Já o historiador e educador paranaense Rhaul de Lemos Santos defende que a ideia de violência e marginalização, assim como a invisibilização dos movimentos culturais dos pretos e pardos no Brasil acontecem porque a construção de imagética desse grupo foi desenvolvida por muito tempo por seu opressor: o colonizador branco.
O comportamento racista que se repete até hoje em verdadeiros espetáculos televisivos viola direitos humanos garantidos pela constituição brasileira, ao vivo e para todo o país. Apesar de já podermos ver algumas mudanças surgindo nas políticas editoriais e representações mais diversificadas entre profissionais da comunicação, o cenário ainda está longe do ideal.
O publicitário paraibano Thiago Silva diz que é muito comum se deparar com a imagem de homens pretos sendo usadas de forma hipersexualizada ou ridicularizada. “Percebo que isso acontece porque muitas vezes, nos ambientes onde se tomam decisões estratégicas sobre o conteúdo a ser criado, trabalham somente pessoas brancas sem um olhar sensível para certas pautas raciais”.
Já no cinema, as referências de homens negros, tanto a frente quanto atrás das câmeras, são poucas. Na visão do estudante de Cinema e Audiovisual, Mario Gallo, nos debates acadêmicos, nomes de homens negros só são citados quando o assunto é voltado a uma público alvo específico, pautas raciais e discriminação.
“As maiores referências que todos temos de cinema são dos filmes dirigidos por homens brancos, sejam eles americanos ou europeus, e dos que falam sobre pessoas brancas em épocas em que o racismo era um ‘faz de conta’”, pontua Mario. “(Homens de sucesso no cinema) existem, mas não são vistos, tampouco reconhecidos pelo público que não transita no meio técnico dos filmes”.
Ele conta que ficou intrigado ao ouvir, uma certa vez, uma mulher negra questionar o motivo de produções dirigidas e protagonizadas por pessoas negras, muitas vezes só terem visibilidade quando o enredo retrata alguma tragédia racial, ou se passa em contexto histórico, “do jeitinho que a Academia gosta”.
“Assim feito por Jordan Peele em ‘Corra!’, Steve McQueen, com ‘12 Anos de Escravidão’ ou Spike Lee com ‘Malcom X’”, cita. ”É loucura não reconhecer o impacto e a necessidade desses longas, mas penso na representação que os filmes querem passar: ser negro é só dor? Quando teremos um final feliz disputando o Oscar?”, indaga Mario.
No jornalismo, por muito tempo, os rostos negros foram extremamente escassos. Apesar do progresso dos últimos anos, o jornalista negro ainda é minoria, ou seja, mesmo com a ideia de que o jornalismo é essencial para se preservar a democracia, a comunicação jornalística ainda é feita majoritariamente pelos mesmos grupos de pessoas.
Comunicação antirracista como solução
Uma pesquisa realizada em 2012 intitulada “Quem é o jornalista brasileiro? Um perfil da profissão no país”, realizada pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em parceria com a Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ) identificou que a presença de pretos e pardos somados do Brasil contabilizavam apenas 23% dos jornalistas brasileiros.
Já em 2021, somente 29.9% se autodeclaram pretos ou pardos na pesquisa “Perfil do jornalista brasileiro 2021 – Características sociodemográficas, de saúde e do trabalho” também feita pela UFSC.
Em quase dez anos de intervalo entre as duas pesquisas, a representatividade negra no jornalismo não chegou nem à metade da presença de pessoas brancas na profissão, principalmente em altos cargos, onde se tomam decisões estratégicas sobre os conteúdos abordados nos veículos.
Mesmo com projetos dedicados a fazer um jornalismo antirracista, que podem diminuir essa falta de diversidade, que vai desde a linha de frente, com repórteres e estagiários até os cargos mais altos como editores-chefes, muitos profissionais negros que trabalham em locais majoritariamente brancos tentam mudar essa cultura.
O pernambucano Ed Silveira trabalha em redações de São Paulo há 12 anos e conta que foi a rotina em hard-news que fez ele enxergar como o mundo o via como homem negro.
“Foi o ato de escrever sobre mortes e falar com familiares que quebrou o cotidiano mecânico de normalizar os fatos. E, nessas experiências, sempre era a morte de jovens que pareciam comigo, que poderiam ser meus irmãos, meus primos. Afinal, como classificar tais episódios com um ‘é, acontece. Deve ter merecido’ e seguir em frente?”, afirmou.
As iniciativas dele começaram tímidas, sem muitas referências ao redor e limitadas pelo próprio modelo editorial das empresas. Mesmo com pouco incentivo no começo, partiu dele a ideia de promover um curso de letramento racial para os jornalistas da redação de um portal onde ele trabalhava.
“Falar sobre o ativismo racial na nossa área é garantir que a gente continue vivo. É uma necessidade de garantir nosso futuro, sabe? e não é só sobre continuar vivo, a gente precisa estar empregado, garantindo o pão na mesa e qualidade de vida”, disse Ed.
Ed também reflete sobre a dificuldade que negros têm de nadar contra a maré para alcançar o sucesso e conta que não faz mais sentido ser o único negro nos ambientes que frequenta. “Aprendi que se tem uma coisa que fortalece muito, é ter essa espécie de rede de apoio em outras pessoas pretas. É necessário estar com outras pessoas pretas, conhecer a história de outros pretos, confraternizar e chorar com eles”, afirma.