“Brutal, realista e doloroso”. Essas seriam palavras que descreveriam muitos filmes hollywoodianos, especialmente aqueles que envolvem narrativas pretas, mas isso não é o caso de “American Fiction” (2023).
Escrito e dirigido por Cord Jefferson, o longa que marca a estreia do diretor acabou passando despercebido na Award Season, em meio ao barbenheimer e as infinity stones. Em uma participação modesta, mas não nula, American Fiction “comeu pelas beiradas” e garantiu o BAFTA e o Critics Choice Awards por ‘Melhor Roteiro Adaptado’ e 5 indicações ao OSCAR 2024, incluindo Melhor Filme, Melhor Trilha Sonora, Melhor Ator para Jeffrey Wright e ator coadjuvante para Sterling K. Brown.
O filme é Baseado no livro “Erasure”, de Percival Everett e tanto nas telas, como nas páginas, acompanhamos a trajetória de Thelonius “Monk” Ellison (Jeffrey Wright), um escritor e professor acadêmico que diante de percalços financeiros resolve escrever uma obra repleta dos mais absurdos estereótipos afro-americanos. O engraçado? O que era para ser apenas uma brincadeira acaba se tornando um best-seller.
American Fiction abre um leque de tópicos quando o assunto é narrativas pretas e estereótipos. O filme discute como obras afro-americanas são apresentadas na literatura e nas artes e, principalmente, adentra nas expectativas sobre as próprias. Todavia, American Fiction não se prende ao didatismo e muito menos transforma suas 1 hora e 56 minutos em um grande manual antirracista em película. Entre sátiras a Hollywood e crises existenciais, o filme brinca com o próprio sistema dentro do sistema.
“Pessoas Brancas não querem a verdade, elas só querem se sentir absolvidas”.
Apesar de apresentada de maneira trivial em uma cena despretensiosa, sinto que essa frase capta a essência de American Fiction e, sobretudo, a visão de Monk.
Sendo um homem afro-americano inserido na elite literária academia, Monk rejeita os padrões pré-estabelecidos do que seria uma literatura afro-americana. Ele abomina os estereótipos “negros”, como a cultura das periferias e a linguagem do gueto, de maneira que sente que obras que apresentam o negro como “Gangster” e utilizam o linguajar simplista são feitas apenas para satisfazer essa culpabilidade branca, ou seja, Monk sente que brancos fetichizam o sofrimento negro e exaltam essas obras de uma forma de minimizar a opressão.
O fato é ainda mais escancarado pela escritora Sintara Golden, vivida na pela da talentosíssima Issa Rae. Logo no início vemos que Golden atingiu o estrelato com um best-seller moldado em estereótipos tão condenados por Monk. Ela é um produto do sistema e o alimenta. O filme muda de figura quando Monk se dá conta de que já está inserido na caixinha que tanto fugiu e percebe que a invencibilidade do sistema, levando-o a uma única alternativa, caçoar do próprio sistema. Seguindo o famoso “é rir pra não chorar” e assim cria o pseudónimo e publica uma das piores histórias já feitas, o best-seller “Fuck”.
O filme atinge seu ponto alto durante o “embate” entre Monk e Sintara. Em uma conversa trivial os personagens discutem raça, gênero e o próprio estereótipo, levando o espectador a presenciar uma virada de chave no filme, na qual percebe-se que a visão de Monk não é tão abrangente assim e que a rejeição pelos estereótipos muitas vezes é interligada a rejeição da própria cultura, logo, em tornar-se o opressor.
QUANDO O DRAMA ENGESSA A SÁTIRA
Apesar de atuar como agente motivador na jornada do protagonista, uma vez que um dos fatores para Monk continuar a publicar “Fuck” é o tratamento do Alzheimer da mãe Agnes (Leslie Uggams), o núcleo familiar se dispersa em American Fiction. Claro que se destaca a atuação de Sterling K. Brown como Cliff, irmão do protagonista. Indicado merecidamente ao Oscar, o ator de “This is Us” entrega um Cliff caótico, carismático e profundo. Contudo, o tempo de tela não faz jus ao personagem, deixando lacunas sobre sua história. Outro fato deixado de lado no filme, é a relação entre os irmãos, dado pelo luto efêmero pela irmã Lisa e o suicídio do pai de Monk, que acaba sendo uma informação inútil ao roteiro, visto que não tem impacto sobre a narrativa.
Mesmo com problemas, o roteiro de Cord Jefferson permanece sendo o trunfo do filme. Com um brilhante timing para a comédia depreciativa, o diretor garante uma ótima estreia nas telonas, uma vez que American Fiction acerta quando discute o que é o estereótipo afro-americano e o ramifica em discussões que dispersam problematizações vazias. É a prova em forma de filme que cineastas pretos têm muito mais a contar do que apenas racismo.
NOTA: 3/5