“Nunca houve um momento específico que me fizesse perceber que sou um homem negro. Eu sempre soube, mas o letramento racial, para entender o que isso implica, veio aos poucos”, diz Thiago Augustto, jornalista, empreendedor, produtor de reportagem, ativista, marido, filho e irmão, que teve sua personalidade moldada juntamente a um longo processo de auto descoberta.
Registrado como natural da cidade de Paulista, na Região Metropolitana do Recife, Thiago que já sabia que era filho adotivo, só descobriu aos 30 anos de idade que, na verdade, nasceu em Barra de Guabiraba, no interior de Pernambuco. Crescendo numa casa com um pai negro e uma mãe branca, desde criança, a questão racial sempre esteve presente na vida dele, mas especialmente fora de casa.
No ambiente familiar nunca existiu diferença de tratamento entre ele e seus três irmãos. Porém, fora de casa, ele teve que aprender a lidar com o estranhamento alheio. “Por muito tempo foi um tabu. As pessoas do ambiente externo me colocavam nessa condição de filho adotivo e sempre que perguntam quem é o adotado, eu ou minha irmã que é branca, eu sempre dizia ‘ah meu pai é negro, e eu puxei a ele’, como escape”.
Sankofa
Dessa forma, sua busca pela ancestralidade surgiu naturalmente à medida que ele amadurecia, impulsionada pelo desejo de compreender sua identidade como homem negro e suas raízes familiares. “Volta e meia, como jornalista, eu ficava refletindo sobre ‘como deve estar a minha família biológica?’. Mas o processo da minha adoção não tinha deixado muitos rastros, foi muito difícil porque não teve documentação, assinaturas, etc, eu pensei que não conseguiria achar essa família”, relata Thiago.
Por um breve momento, algumas dúvidas surgiram sobre seu lugar no mundo. Ele sabia que estava em uma família amorosa e apoiadora de todos os seus sonhos, mas sentiu que nem todas as suas questões pessoais eram as mesmas que as do resto da família. Surgia então a necessidade de saber de onde ele vinha.
“Tem aquela frase: ‘se você não sabe de onde você vem, você não sabe para onde você vai’, e eu, particularmente, me sinto muito mais completo agora que estou ciente da minha história. O que eu fiz foi buscar pela ancestralidade, fiz o movimento de Sankofa”
Thiago Augustto
Sankofa significa olhar o passado para entender o futuro e buscar respostas nas suas raízes para entender para onde está indo, e foi o que Thiago fez. “E não foi por falta de amor. Eu amo minha família adotiva incondicionalmente e devo tudo a eles. Eu sempre quis deixar muito explícito para minha mãe que não se tratava de falta de amor. Não é por falta. É por querer mais”.
A jornada de Thiago rumo ao encontro consigo mesmo é contínua e multifacetada. Não foi necessário um momento específico para que ele reconhecesse sua negritude. Mas, apesar de sua autoconsciência precoce, o entendimento do que é o racismo evoluiu ao longo do tempo.
Um episódio marcante na infância do pequeno Thiago aconteceu quando ele foi chamado de macaco, por seus colegas de turma, por levar uma banana para o lanche da escola. A experiência deixou um trauma profundo que o acompanhou até a vida adulta. Oprimido, sua primeira reação foi tentar ofender as outras pessoas e guardar a fruta pela qual teria aversão por muitos anos.
“Há uns quatro ou cinco anos, minha esposa me questionou o porquê de eu ter aversão à bananas e eu demorei para conectar os pontos e entender que foi por causa do racismo que eu passei ainda criança”, revela o jornalista. “Também teve uma vez, aos 14, que eu estava com um amigo num campo de futebol, quando a polícia chegou apontando um fuzil para nós. Segundo eles, isso foi por causa de uma denuncia de dois jovens traficando, e por sermos dois jovens negros, pensaram que era a gente”.
Testemunhar a brutalidade do preconceito racial desde cedo trouxe resiliência de uma forma danosa e complexa. Sua história então, virou mais um lembrete de alguns dos desafios enfrentados por jovens homens negros no Brasil.
Masculinidade
A figura do pai adotivo de Thiago Augustto é de um homem de sensibilidade marcante. Embora Thiago reconheça sua própria dificuldade em expressar emoções, ele admira a capacidade do pai de se abrir sobre seus sentimentos, e por isso, ele encontra na figura paterna um modelo de masculinidade positiva e presente.
Apesar de sua natureza reservada, o pai de Thiago passou adiante ensinamentos valiosos sobre uma comunicação através do silêncio. A tensão racial subjacente nas interações entre seus pais, especialmente em questões de autoridade, se fizeram presente na dinâmica familiar, mesmo que o assunto não fosse debatido.
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“Meu pai é um homem preto, e minha mãe é mulher branca. Ele ficava incomodado porque a gente pedia tudo a ela. A última palavra era sempre dela”, conta. Essas questões levaram Thiago a explorar essas questões mais profundamente na terapia em busca de entender melhor o que isso implicava na existência de um homem preto.
A compreensão do que significa ser homem, pai e marido foi moldada fortemente pela presença do seu pai adotivo. “Meu pai é espelho da masculinidade pra mim. Ele é sensível e quebra o esteriótipo do homem negro agressivo ou ausente. Ele sempre se preocupou muito com os filhos e com o exemplo que ele podia ser para nós”.
Um jornalista antirracista
“Na verdade, eu queria ser jogador de futebol e cheguei muito perto disso, mas então eu precisei decidir entre jogar bola ou entrar na universidade”, comenta Thiago, que começou sua carreira como jornalista esportivo, motivado pela sua paixão. Por ver tantas representações negras no futebol — pelos menos entre os atletas — Thiago só passou a refletir sobre as questões raciais da comunicação quando começou a atuar no jornalismo geral, após se formar, no final de 2014, pela Faculdade Joaquim Nabuco do Recife.
Além das redações predominantemente brancas, ele começou a questionar a discrepância na cobertura de mortes, onde as vidas de pessoas negras nas comunidades muitas vezes passavam despercebidas, enquanto mortes em bairros mais privilegiados recebiam maior atenção midiática. A disparidade o levou a perceber problemas como a necropolítica e a maneira que o Estado normaliza a desigualdade sociorracial e a morte de pessoas negras.
Thiago encontrou sua voz ao abordar questões raciais e sua compreensão, cada vez mais profunda, sobre o papel da mídia na perpetuação do racismo o motivou a explorar, com mais vigor, essas temáticas. “A comunicação contribui até hoje para esse imaginário racista e eu comecei a entender isso quando vi que a morte de um corpo preto é uma coisa normal”, explica o jornalista.
Desde o início da carreira, Thiago já se interessava e estudava tais posicionamentos na comunicação e atualmente é uma das pessoas na linha de frente da Globuntu no Nordeste, grupo de diversidade racial da Rede Globo, que promove ações e debates sobre variados temas.
Depois do auto entendimento sobre o local do seu corpo no mundo, veio a paixão pelas pautas que o atravessa. Ele conta que se quisesse escolher outro curso ou profissão para seguir, escolheria filosofias africanas: “É uma área que eu quero fincar o pé ainda mais, quero continuar sendo um pesquisador de relações étnico-raciais”.
Autoconhecimento
Reconhecer cada vez mais a diversidade da população preta, fez Thiago conhecer um pouco mais de si mesmo. “Infelizmente a escola é eurocêntrica pra caramba, então a gente tem um pensamento que de pessoas negras são uma coisa só, mas na verdade somos muito plurais”, diz Thiago.
“As pessoas acham que nós somos minoria, mas a gente é minorizado”
Thiago Augustto
As várias maneiras que o povo preto performa sua cultura na sociedade é que o faz Thiago se apaixonar. E foi vendo a necessidade de acender uma luz sobre essas pessoas que muitas vezes são invisibilizadas que ele criou a “Futuro Black”, empresa social que tem o propósito de conectar pessoas pretas à oportunidades.
Thiago explica que seu lado empresário começou quando ele teve a ideia de criar um banco de talentos que impulsione pessoas negras, já que “pessoas brancas, muitas vezes, têm condições melhores de se divulgar, e pelo simples fato de serem brancas, são chamadas para trabalhos e empregos com maior facilidade”.
Hoje a empresa é seu maior orgulho e ainda tem muito espaço para crescer. “Enquanto jornalista, eu entendo essa missão de continuar fazendo esse trabalho e de colocar mais pessoas pretas na telinha, para falar não só sobre violência, mas sobre celebração, sobre religião, empreendedorismo, e não só em novembro, porque se a gente trabalha o tempo todo, então vamos se pautar positivamente o tempo todo”.